Alfazema e Maresia

Um conto de índole espiritual que, numa dúzia de páginas ligeiras, relata a primeira missão terrena de um anjo, na qual encontra um gatinho traquina e uma jovem professora primária.






Há catorze horas e vinte e três minutos, havia pousado na areia fina que as ondas lambiam mansamente, sob a mínima luminosidade do Sol acabado de nascer. Até ao ocaso, dispunha do tempo justo para a primeira missão.

Para energizar o corpo, desvitalizado pela descida, o anjo virou-se para Nascente — os olhos bem abertos, maximizando a absorção de energia vital — e estendeu os braços, com as palmas das mãos voltadas para cima. Passados uns minutos, todo ele se sentia morno, dinâmico e positivo. Estranhamente, adquirira um leve odor a alfazema: um detalhe que o encantou. De sorriso aberto, confiante, subiu a duna e iniciou a jornada em busca de alguma criatura carenciada de auxílio.

Atravessou os campos de milho alto, que o sargaço nutria. Achou curiosa, aquela sensação de ausência de contacto: sentia a energia vibrante dos vegetais, mas não o roçar das hastes verdes e fortes no corpo de luz. De igual forma, era desprovido de outras sensações físicas: não ouvia as ressonâncias harmónicas do vento, dedilhando uma orvalhada teia de aranha; não sentia o cheiro fresco do sal que outrora se lhe colava à pele, nem a humidade cintilante das gotículas de orvalho que se evaporavam das folhas tenras. Mas não era insensível ao ambiente onde se encontrava: a matéria é energia condensada; pelas subtis variações energéticas — quer em frequência, amplitude, fase, modulação — distinguia claramente todas as características físicas que são transmitidas pelos sentidos.

Era a primeira vez que voltava à Terra liberto do corpo físico. Retinha a memória vívida de todas as sensações terrenas que experimentara ao longo de séculos, mas não sentia falta delas. A nostalgia e o apego a emoções pueris haviam-se desprendido dele há muito; qual serpente descamada da última pele, flutuando agora livre no vento como uma mágica criatura de fumo. (...)


O lobo das estepes


poema de Hermann Hesse
mudado para o português por Herberto Hélder




Eu, lobo das estepes, corro, corro,
a neve cobre o mundo,
da bétula levanta voo o corvo,
mas nunca aparece uma lebre, nunca aparece um cervo.
E como eu amo os cervos!
Se acaso encontrasse algum,
prendia-o com garras e dentes:
é a coisa mais bela em que penso.
Com os sensíveis seria tambem sensível,
devorava-os todos de extremo a extremo,
bebia-lhes até ao fundo o sangue púrpura e espesso,
e solitariamente uivava pela noite dentro.
Contentava-me com uma lebre.
É tão doce à noite o sabor da sua carne quente.
Porventura foi-me negado tudo quanto possa, um pouco,
alegrar a vida, um pouco apenas?
A minha companheira, há muito que a não tenho,
o pêlo da minha cauda começa a ficar cor de cinza,
e só quando há bastante luz é que vejo.
Agora corro e sonho com cervos,
ouço o vento soprar nas grandes noites de inverno,
e a minha alma dolorosa, entrego-a eu ao demónio.